Os
Lusíada, de Luís de Camões, foi publicado em 1572, no auge do Renascimento
literário português, quando houve um despertar dos valores clássicos, e a visão
teocêntrica da idade medieval deu lugar ao antropocentrismo. O texto camoniano
está intimamente ligado ao ímpeto inaugural da expansão marítima e dos avanços
científicos. N’Os Lusíadas sobrepõe-se mito e realidade, Camões canta “o peito
ilustre lusitano”, ou seja, o português renascentista e desbravador, que, assim
como os Argonautas do mito grego, desbravam corajosamente o oceano enfrentando
vários obstáculos para conquistar seu objetivo: a posse de novas terras. Camões
utilizou para a construção de sua narrativa, no plano histórico, a rota
perseguida por Vasco da Gama, seu principal herói. Para Massaud Moisés:
O fundamento ideológico da visão camoniana não depende
da exatidão científica dos acontecimentos descritos no poema, mas numa crença
inabalável na razão que eleva o homem acima da natureza bruta, aproximando-o de
Deus ou dos deuses. (MOISÉS, 2006, p. 40).
Na obra Epopeia do homem moderno, Moisés (2006) destacou que, como bom renascentista,
“Camões acreditava que o homem se tornaria senhor absoluto do universo,
exercendo domínios que, na antiguidade, eram atribuídos aos deuses”. N’Os Lusíadas,
o plano real e mítico se sobrepõe. Por ser uma obra essencialmente cristã, foi submetido
à apreciação do “santo ofício” e, embora abarque uma constelação de deuses
pagãos, afirmou não ter encontrado nela, “coisa alguma de escandalosa, nem
contrária à fé e aos bons costumes”. Católico, mas também um humanista, para
Hernani Cidade “Camões era um cristão enamorado do paganismo”. Este mesmo autor
em Luís de Camões: O Épico escreve
que Camões canta “outro valor mais
alto que se levanta”, que é o cristianismo. Assim, o plano mitológico na
narrativa camoniana é descrito por Cidade (1968, p.134), como “um artifício
lúdico criado por suas tendências de artista”.
Este recurso era também uma possibilidade
de tratar de temas e criar ficções que a doutrina cristã não aceitava como, por
exemplo, o episódio da ilha dos amores. Tal recurso, também designado “estilo
maravilhoso”, permitiu que Camões exprimisse simbolicamente sua visão de mundo,
sem que o caráter realista do poema ficasse prejudicado.
Carl Gustav Jung (1996, p. 20) em O homem e seus Símbolos afirmou que “uma
palavra ou imagem simbólica implica alguma coisa além do seu significado
manifesto e imediato”, dessa forma, Os
Lusíadas desafia o leitor com uma constelação de símbolos que são
representados por variados personagens. Camões
já anuncia o artifício apresentando as façanhas míticas como “façanhas
fantásticas, fingidas e mentirosas”, e as portuguesas como “as verdadeiras”,
que “excedem as sonhadas, fabulosas”:
Ouvi: que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamente e o vão Rugeiro
E orlando, inda que fora verdadeiro.
[...]
Dou-vos também aquele ilustre gama.
Que para si, de Enéias toma a fama.
(Canto I, p. 11- 12)
Para Hernani Cidade (1968, p.135), o poeta lusitano valoriza como
objeto de contemplação estética e fonte de emoção épica e trágica a própria
realidade, ele se apropria da ficção mitológica para superar, pelo vôo imaginativo,
os limites da realidade. Camões evoca Vênus, “afeiçoada à gente Lusitânia”, por
ter as qualidades dos romanos, como àquela que intercederá junto a Júpiter
pelos navegadores, e Baco, na trama, será o grande opositor dos portugueses.
Baco é descrito como teimoso e astuto e sua oposição aos portugueses será
porque “altamente lhe dói perder a fama”, pois, “esquecerão seus feitos no
oriente”, “se lá passar a lusitânea gente”. Baco representa os adversários, as
forças opositoras, ou seja, “a ímpia gente”, os não cristãos.
Os
Lusíadas ilustra um momento em que Portugal luta para se formar como nação,
luta contra o castelhano que lhe nega autonomia e contra o mouro que lhe ocupa
o território (CIDADES, 1968, p. 156). O intuito colonialista português que
busca conquistar terras e impor sua religião e língua pode ser vista na
passagem:
Goa [cidade da Índia] vereis aos mouros ser tomada,
A qual virá depois a ser senhora
De todo Oriente, e sublimada
Co’os triunfos da gente vencedora.
Ali, soberba, altiva e exalçada,
Ao gentio que os ídolos adora
Duro freio porá, e a toda terra
Que cuidar de fazer os vossos guerra.
(CAMÕES, C. II, 51).
Vês Europa cristã, mais alta e clara,
Que as outras em polícia e fortaleza.
Vês África, dos bens do mundo avara,
Inculta e toda cheia de bruteza.
[...]
(Canto. X, p. 92)
Vênus representa para os portugueses o
amor pátrio, e o amor foi um tema muito valorizado por Camões. A viagem do Gama,
no plano estético, é apresentada como uma cruzada de amor que terá seu ápice no
episódio da Ilha dos amores. Até a
Ilha dos amores, os deuses pagãos desempenham as ações na trama do texto, mas são
invisíveis para os nautas, sendo sempre associados com as forças naturais,
assim, estrategicamente, quanto mais discreto o auxílio do divino, mais fica
evidente a eficiência do esforço humano.
Moisés (2006, p. 39) defendeu que eram “os
deuses” que davam sustentação à ação central do poema. Salvo os “infiéis”, ou
seja, os africanos, os indianos, que sempre são apresentados pelo poeta em
plano inferior, os obstáculos da viagem se resumem a fenômenos naturais como, por
exemplo, o mito do Adamastor, é sabido que lendas aterradoras povoavam o
imaginário popular antes das grandes navegações. Adamastor é um titã
mitológico, um rochedo, “o segundo do Rodes estranhíssimo colosso”, uma
referência do poeta a estátua de Apolo que ficava na cidade de Rodes, uma das
sete maravilhas do mundo. Adamastor surge na narrativa como a representação do
imaginário dos navegantes, e das tempestades do Cabo das Tormentas:
Eu sou aquele oculto e grande cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório.
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio
Estrabo, Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda costa Africana acabo.
[...]
(Canto. V, p. 50)
A natureza impõe-se ao homem e Adamastor
jura vingar-se de quem o descobriu: “aqui espero tomar, se não me engano, de
quem me descobriu suma vingança” (canto V, 44), o texto refere-se a Bartolomeu
Dias, descobridor do cabo de Boa Esperança. Outro episódio impregnado de
significação é o do Velho do Restelo. Cidade refere-se a esta passagem como
sendo “pomo de discórdia entre comentadores”, isso devido à contradição que
instaura a primeira vista, com palavras de renúncia, num poema que exalta a
ânsia expansionista (CIDADE, 1968, p. 146):
__ Ó glória de mandar, ó vã cobiça,
Desta vaidade a que chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Co’ uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade nele experimentas.
(Canto. IV, p. 95)
[...]
Que promessas de reinos e minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que fama lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
(Canto. IV,p. 97)
O Velho do Restelo que “ficava na praia”,
“entre as gentes”, soa como a “voz pesada”, contra a viagem, á a voz das
viúvas, dos órfãos, dos agricultores, ou seja, dos que ficaram, mais uma vez
história e mito se entrelaçam e o lamento cantado nesta estrofe, justifica-se,
Vasco da Gama quando partiu da praia do Restelo para sua jornada, levou com ele
170 homens e retornou com apenas 55 vivos para Portugal:
Qual vai dizendo: __ Ó filho a quem eu tinha,
Só para refrigério e doce amparo,
Desta já cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mim te vás? Ó filho caro,
A fazer o funério enterramento.
Onde sejas de peixe mantimento?
(C. IV, 90)
Outros episódios entrelaçam de forma
poética história e mitos, citaremos alguns. Camões ao falar da doença “crua e
feia” que “morto ficava quem a tinha”, faz uma referência ao escorbuto, doença
causada pela falta de vitamina ‘C’ no organismo. O quadro descrito por Camões
atingiu a frota de Vasco da gama a caminho de Calicute, na Índia:
E foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem o ver o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na
boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia.
Apodrecia co’um fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
[...]
(Canto V, p. 81- 82)
Muitas são das referências feitas à
personalidades européias e da história de Portugal, entre elas: Martim Lutero,
precursor da Reforma protestante a respeito deste Camões escreve: “Do sucessor
de Pedro revelado, novo pastor e nova seita inventa” (Canto VII, p. 4). Camões
refere-se como “falso rei” e “galo indigno” a Francisco I, rei da França e
grande difusor do renascimento, refere-se dessa forma por este não “guardar a santa
lei”, o cristianismo (Canto VII, p. 6). Refere-se, também, ao rei da
Inglaterra, Henrique VIII, como “duro inglês que se nomeia rei da velha e
santíssima cidade”, e que “para os de cristo tem espada nua” (Canto. VII, p. 5).
Acerca do sucessor de Vasco da Gama, Henrique de Menezes, dirá: “Virá depois
Meneses, cujo ferro, mais na África, que cá, terá provado; castigará de Ormuz
[cidade na entrada do Golfo Pérsico] soberba o erro, como lhe fazer tributo dar
dobrado” (Canto. X, p. 53).
No texto encontramos uma referência ao
Brasil: “Mas cá onde se alarga ali tereis, parte também, co’o pau vermelho
nota. De Santa Cruz o nome lhe poreis. Descobri-la á a primeira vossa frota” (Canto.
X, 140). Assim, Camões teceu seu poema, unindo ficção e fatos históricos.
Do ponto de vista literário, Os Lusíadas não são uma narrativa
histórica. No canto V a deusa Tétis denuncia a estratégia camoniana ao declarar
que os deuses da mitologia são ficção criada pelo poeta, ou seja, um ornato
poético:
Aqui, só verdadeiros gloriosos
Divos estão, porque eu Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos.
Fingidos de mortal e cego engano
Só pra fazer versos deleitosos.
Servimos, e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nesta estrela pôs o engenho vosso.
(Canto X, p. 82).
A trama mítica tem seu desfecho quando
Baco e Netuno se rendem e reconhecem a superioridade dos humanos, e Vênus coroa
o feito português conduzindo a frota à Ilha
dos Amores onde esperam pelos nautas as ninfas “já feridas por Cupido”, ali
eles se fartarão dos prazeres carnais, mas com o consentimento divino. Segundo
Moisés (2006, p. 51), “a Vasco da gama destina-se à companhia de Tétis e um
prêmio extra, avistar a máquina do mundo”, Tétis lhe explica o sistema
planetário e diz que podem “voltar à pátria amada”, para as “eternas esposas”.
A Máquina do Mundo descreve o conhecimento
astronômico de Camões, embora o sistema de Copérnico já fosse conhecido, o
texto descreve o sistema Ptolomaico. Modesto Camões declara acerca de seu
conhecimento:
Mas eu falo, humilde, baixo e rudo,
[...]
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
(Canto X, p. 154)
Cidade (1968, p, 154) ressaltou a
importância do episódio da Máquina do Mundo e do descerramento do planetário
dentro da obra como sendo uma celebração da aproximação entre Oriente e Ocidente.
Não sendo a modéstia um atributo deste poeta português que “luta e canta”, para
Ronaldo Menegaz (2001, p. 260), “Camões extrapolou os limites de sua proposta, gerando
um canto onde se revela uma sabedoria universal e intemporal e uma consciência
extremamente alertada para a fragilidade, a falibilidade e a insegurança da
condição humana”. Os Lusíadas termina
com Camões colocando sua obra a altura da Homero:
[...]
A minha já
estimada e leda musa
Fico com que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro [refere-se a Alexandre Mágno,
rei da Macedônia]
Em voz se veja
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
(Canto. X, p. 153).
Referências:
-
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. São Paulo: Klick.
-
CIDADE, Hernani. Luiz de Camões o Épico. 3. ed. [S. L].: Bertrand, 1968.
- MENEGAZ, Ronaldo. Os Lusíadas, do livro à obra: a contribuição de Cesário Verde. SEMEAR: Rio de Janeiro, n. 5. , 2001, p. 259 a
277.
-
MOISÉS, Felipe Carlos. Epopeia do homem moderno.
Entre Livros, São Paulo, 2006. Edição Especial, p. 39- 41.
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